quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Até quando?


Mês de outubro, foi emblemático na "discussão sobre a questão da violência" no Brasil:

- o Artigo do Ferréz ( que aqui reproduzo) sobre o incidente com o ex-paulistano e apresentador global;

- O debate sobre o filme Tropa de Elite( um bom artigo do professor M.A. Nogueria, que tb reproduzo);

- As declarações do Gov. do Rio de Janeiro, sobre 'as raízes da violência' na cidade do Rj;


Opinião: Pensamentos de um "correria"

FERRÉZ
ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto.
Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos.
Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.
O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.
Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.
Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal.
Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.
Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber.
Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado?
Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém.
Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não!
Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.
Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora.
Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.
Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.
A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!
Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.
Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.
No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio.
Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

REGINALDO FERREIRA DA SILVA, 31, o Ferréz, escritor e rapper, é autor de "Capão Pecado", romance sobre o cotidiano violento do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde ele vive, e de "Ninguém é Inocente em São Paulo", entre outras obras.

xxx

Artigo enviado pelo profº e amigo R. Prando

O Estado de S. Paulo, 27 de outubro de 2007, p. A2.

Radicalização periférica

Marco Aurélio Nogueira

Logo no início de Tropa de Elite – o interessantíssimo e polêmico filme de José Padilha – fica-se sabendo que polícia, crime e tráfico fazem parte de um mesmo sistema: entrelaçam-se como fios de novelos gêmeos, corrompem-se e se degradam mutuamente. Quase de imediato percebe-se também que o entrelaçamento é mais profundo. Nos morros e na cidade, os desejos de consumo, os estilos, a linguagem e os comportamentos sugerem uma ausência de distância social, ainda que seja escandalosamente ostensiva a disparidade de renda, educação e oportunidades entre aqueles mundos unidos pela diluição ética e pelo ofuscamento do futuro.

Os morros retratados no filme são ambientes abandonados, assistidos por uma ONG bem-intencionada, mas não pelo poder público. Jovens burgueses e de classe média compartilham espaços e drogas com jovens pobres, marginais e crianças, misturando de modo louco universos que, na base da sociedade, são incomunicáveis e se rejeitam com veemência. Parece não haver classes naquela “comunidade” unida pelo desejo de sobreviver, de consumir, de “fazer algo” e acontecer, sempre que possível contra o Estado (a polícia). Mas a exclusão, a miséria, a falta de perspectivas explodem por toda parte, a evidenciar um dilaceramento social extensivo. A violência generalizada é seu fermento, a dificuldade comunicacional seu combustível. Não é somente a truculenta e fascista elite da tropa que se revela desqualificada para propor uma saída: todos – traficantes, universitários, políticos – chafurdam na mesma impossibilidade de ação positiva, dramaticamente abraçados.

Pode-se até dizer que o filme exagera na apresentação da violência, que nos morros também há gente decente dedicada a alcançar patamares consistentes de dignidade e sobrevivência. Que a polícia não é só aquilo que se vê, uma corporação corroída pela corrupção, pelo despreparo e pela luta interna. Como toda obra de arte, Tropa de Elite dá margem a muitas interpretações. Pode ter fascinado alguns brucutus de plantão e seduzido aquela parcela da população que acredita na lei do cão, mas não deixa ninguém indiferente. Ao desnudar uma situação lancinante, explosiva, faz um irrecusável convite à reflexão. Incentiva-nos a pensar no Brasil atual, onde o moderno está ao mesmo tempo radicalizado (repleto de tecnologia, individualizado e desinstitucionalizado) e aprisionado pela condição periférica do país, que nos mantém com boa parte do corpo submerso na pobreza, na ignorância e no atraso econômico-social.

O entrelaçamento destas duas “lógicas”, a da modernidade radicalizada e a da condição periférica, a do celular e a da miséria, dá cores ao Brasil atual. Voracidade produtiva e consumista, desejo contínuo de exposição, diversão e velocidade, conectividade fácil, desengajamento, fuga do Estado e da política – são fenômenos derivados do moderno que se radicaliza. Vida que escoa pelos dedos, sem direção e sem formato estável: “líquida”, na sugestiva linguagem metafórica de Zigmunt Bauman. A condição periférica, por sua vez, nos encharca de pobreza, de violência, de luta insana pela existência, de indigência e não-reconhecimento, de massas subalternizadas, vistas como ameaça e problema, não como fato humano ou gente. A interpenetração das duas condições produz um tipo de vida: dinâmica, frenética, desigual, efêmera, inevitavelmente insegura e perigosa. Se a inovação tecnológica infrene apaga as distâncias de tempo/espaço, ela ao mesmo tempo polariza a convivência, separando as pessoas, por exemplo, em incluídos e excluídos digitais ou informacionais. Ao passo que, para uns, drogas e celulares são meios de vida, para outros são fontes de prazer e entretenimento.

Encontramos traços deste modo de ser por onde quer que caminhemos. Ou será que as dificuldades e incertezas da escola e da educação têm a ver somente com fracasso pedagógico ou despreparo dos professores? A longa e interminável crise do Congresso seria por acaso o resultado exclusivo da mediocridade da classe política? E o que dizer da condição falimentar dos partidos? Podemos nos contentar em atribuir as seguidas tragédias (aéreas, rodoviárias, urbanas, hospitalares) de nossos dias somente aos “sistemas” e a seus operadores?

A modernidade radicalizada periférica está pulsando em nossos nichos sistêmicos e existenciais. A vida líquida, por aqui, é ainda mais informe. Não necessitaríamos de filmes como Tropa de Elite para saber disso. Bastaria olhar para os ambientes em que julgamos estar nossas maiores virtudes: nossas instituições, da família aos sindicatos, passando pelas escolas e pelos tribunais, pelo mercado e pelo Estado. Tudo parece meio desfocado e fora de controle: em transição acelerada, recomposição e “sofrimento”. Há coisas novas despontando, coisas velhas ruindo com estardalhaço, outras fenecendo em silêncio. O tom dominante é de dúvida, medo, incerteza e insegurança, mas não há como desprezar a potência positiva daquilo que emerge, nem achar que todos os cidadãos se deixaram contaminar por igual e não se orientam mais por nenhum valor cívico (a honestidade, a decência, a integridade) ou aposta política.

A questão, como sempre, está na contradição e na ambivalência. Aquilo que se mostra mais “emancipador” – a liberdade de escolha, a mobilidade, a democratização dos relacionamentos – também traz consigo novas injustiças e a reiteração de problemas já conhecidos: vantagens e oportunidades desigualmente distribuídas, hierarquias e assimetrias de novo tipo, exclusões inaceitáveis.

A época é estranha, turbulenta, difícil de ser decodificada. Ela está a nos dizer que problemas e conflitos não podem ser resolvidos por medidas unilaterais ou discursos fáceis. Dependemos sempre mais de pensamento crítico articulado e de políticas inteligentes, contínuas, democráticas, que valorizem as pessoas e produzam resultados sustentáveis.


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